Anoreg RS

“A importância da atividade registral e notarial pode ser resumida em uma expressão: segurança jurídica”

Desembargador Carlos Cini Marchionatti concedeu entrevista exclusiva à Anoreg/RS sobre o lançamento do livro “Dúvida Registral Imobiliária e Direitos Fundamentais”

O desembargador Carlos Cini Marchionatti, em entrevista exclusiva à Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul (Anoreg/RS), falou sobre o lançamento do seu livro “Dúvida Registral Imobiliária e Direitos Fundamentais”.

A importância do livro para os notários e registradores pode ser salientada pela constatação de que a propriedade privada imobiliária possui dupla perspectiva, como direito real e como direito fundamental. A obra aborda amplamente ambas as perspectivas, com o aprofundamento teórico necessário”, destaca o desembargador Carlos Marchionatti.

Leia a entrevista completa:

Anoreg/RS – O que a obra aborda?

Carlos Cini Marchionatti Ao responder, devo agradecer a oportunidade desta entrevista e dizer que as perguntas são exemplares para compreender a obra. O tema central é o procedimento da dúvida registral imobiliária. A perspectiva de análise é a propriedade privada imobiliária como direito fundamental. Uma das contribuições científicas corresponde à superação da doutrina que considera a dúvida procedimento administrativo, com a necessária observação de que se trata de uma discussão fascinante e de décadas e que também se aviva nas organizações judiciárias e na jurisprudência dos tribunais, do STJ e do STF.

Entre as contribuições científicas, pode-se também mencionar a otimização da propriedade privada nas situações em que, não podendo o registrador efetivar o registro ou a averbação, pode autorizá-lo o juízo competente mediante a incidência do princípio fundamental da propriedade privada. Nesse sentido, devem ser postas em destaque as atividades do registrador e do juiz, tremendamente relevantes, e os critérios legais mediante os quais as exercem. São atividades complementares, jamais antagônicas. Principalmente, há situações em que o oficial não pode registrar ou averbar, pois está, por imperativo de segurança jurídica, vinculado ao critério da legalidade estrita, que, se não atendido, pode ter por consequência uma indesejada exposição à responsabilidade pessoal.

Ao juiz, no exercício da jurisdição voluntária, onde o critério preponderante é o da conveniência ou oportunidade, faculta-se mais do que se permite ao oficial. No procedimento e no julgamento da dúvida registral imobiliária, o juiz pode dispensar ou suprir exigência legal e autorizar o registro ou a averbação do título apresentado, em proteção da propriedade privada como direito real pela legislação e como direito fundamental pela Constituição da República. Isso resulta em benefício do sistema registral, das partes e da sociedade. Naturalmente existem múltiplos desdobramentos, dos quais se mencionam aqui os principiais e resumidamente, como a ocasião deste diálogo generosamente propicia.

Anoreg/RS – Qual a importância do livro para os notários e registradores?

Carlos Cini Marchionatti A importância do livro para os notários e registradores pode ser salientada pela constatação de que a propriedade privada imobiliária possui dupla perspectiva, como direito real e como direito fundamental. A obra aborda amplamente ambas as perspectivas, com o aprofundamento teórico necessário. De um modo geral, pode-se dizer que nos atos notariais e registrais prepondera o direito real da propriedade privada imobiliária ou os direitos reais que se desdobram dela. No entanto, deve ser observado que o direito real da propriedade privada imobiliária tem o sentido de garantia institucional ao direito fundamental correspondente.  Com isso, o direito real remete ao tratamento legislativo, enquanto o direito fundamental é uma norma-princípio constitucional. Ao juiz, na decisão da dúvida registral imobiliária, prepondera a dimensão da propriedade como direito individual, uma dimensão jusfundamental, embora não possa dispensar o seu tratamento como direito real.

Anoreg/RS – Como o livro contribui quanto ao procedimento da dúvida registral imobiliária?

Carlos Cini Marchionatti Esta pergunta, muito bem-feita, traz para mim felizes e saudosas recordações. Meus antecessores foram serventuários da justiça, como se designavam o registrador, tabelião, escrivão, que me ensinaram a importância das funções e o sentido de servir à sociedade. Tenho muitos amigos, para minha alegria e honra, entre registradores e tabeliães.

A primeira pessoa de quem ouvi sobre a dúvida registral foi o saudoso amigo César Beck Machado, registrador em Santo Ângelo, quando eu iniciava na advocacia. De algum modo, mesmo incipiente para mim na ocasião, percebi a função da dúvida registral, de que, quando o oficial não podia realizar o ato registral, talvez pudesse autorizá-lo o juiz, resguardado o uso do processo contencioso. Na expressiva maioria das vezes tudo se resolve em âmbito notarial ou registral, mas há situações em que se torna imprescindível a decisão jurisdicional.

Então, o livro busca contribuir de duas maneiras principais quanto à compreensão do procedimento da dúvida registral imobiliária.  Uma delas diz respeito às características do procedimento em si, que o definem tipicamente como de jurisdição voluntária, outra delas diz respeito ao julgamento do juiz, porque se distinguem os julgamentos em jurisdição voluntária e em jurisdição contenciosa, pois os critérios, os fundamentos são distintos. Essas considerações podem ser reunidas, então, na classificação do procedimento como jurisdição voluntária, modalidade jurisdicional em que o juiz não está adstrito à legalidade estrita e pode decidir conforme considerar mais conveniente ou oportuno, privilegiando a dimensão do direito fundamental à propriedade privada imobiliária como direito individual da parte interessada. Distintamente, o registrador, ao qualificar o título, está vinculado à legalidade estrita.

Comparativamente, ampliam-se ao juiz as considerações jurídicas e as possibilidades registrais, e, mesmo assim, por expressa previsão legal, não se impede o uso do processo contencioso. O sistema legal está muito bem concebido e realmente se destina à concretização da segurança jurídica.  Assim, por meio da consideração da propriedade privada imobiliária como direito fundamental e simultaneamente direito real, busca-se oferecer critérios inovadores para julgamento da dúvida mediante juízo de conveniência e oportunidade em que se otimize o direito fundamental correspondente.

Anoreg/RS – Qual a importância da atividade cartorária na desburocratização e desjudicialização dos serviços?

Carlos Cini Marchionatti Que bela pergunta. Nos julgamentos judiciais, prepondera a visão da existência de um litígio de interesses entre partes. Isso faz com que, na prática, deixe-se de valorizar a jurisdição voluntária, que se aproxima da administração dos interesses privados, independentemente da existência de um litígio. Costumo dizer, a exemplo de doutrinadores de grande nome, que a praxe forense ainda não dimensionou a importância da jurisdição voluntária, mesmo que, no serviço forense, haja casos de jurisdição voluntária que são múltiplos.

Costumo dizer também que, quando as partes não observam os cuidados que a lei determina, estão trilhando o caminho do litígio, que, judicializado, pode ser fonte de muitos dissabores. Para ilustrar, doações verbais, promessas de compra e venda sem escritura pública, entre outras situações, tornam-se frequentemente questões judiciais de difícil solução para qualquer das partes. Há, assim, cuidados dos quais não se pode abrir mão, são essenciais à declaração da vontade, como a escritura pública, mesmo que possa ser antecedida de instrumento particular, como o registro dela para constituição do direito de propriedade por ato entre vivos. Em outras situações pode-se aperfeiçoar, o que se pode considerar espécie de desburocratização ou desjudicialização dos serviços, algo fortemente conveniente.

Os exemplos talvez mais significativos dizem respeito à usucapião e aos arrolamentos extrajudiciais. Esse aperfeiçoamento decorre da compreensão do sistema de aquisição de direitos reais sobre bens imóveis. Na usucapião, adquire-se a propriedade ou outro direito real suscetível de posse no instante em que se completam os requisitos da modalidade da usucapião, e isso independe de sentença ou do registro. Na sucessão mortis causa, a herança transmite-se no momento da abertura da sucessão, uma forma até mesmo poética para não dizer que a morte transmite os direitos do ex-titular. O arrolamento ou inventário posterior formalizará essa situação em torno do direito já adquirido. É isso que, na essência, permitiu tal aperfeiçoamento nos serviços notariais e registrais, desjudicializando procedimentos. Penso que haja outras situações a aperfeiçoar, pois o sentido do aperfeiçoamento é constante e ilimitado.

Anoreg/RS – Qual a importância da atividade registral e notarial para a sociedade?

Carlos Cini Marchionatti A importância da atividade registral e notarial pode ser resumida em uma expressão: segurança jurídica. A meu juízo, nada se compara à segurança de uma escritura pública, dotada de fé pública feita por tabelião preparado, e do seu registro no Registro de Imóveis mediante a qualificação registral, tornando-a ainda mais pública, constitutiva do direito correspondente e oponível a quem quer que seja. Posso exemplificar de um modo que agrade a colorados e gremistas. Ambos os clubes de futebol se utilizaram do direito real de superfície para construir a Arena ou reformar o Beira-Rio. O direito real de superfície, hoje regulado no Código Civil, corresponde ao direito de construir ou plantar em terreno de outrem. Ambos os clubes e os interessados realizaram escrituras públicas levadas a registro, e assim agiram muito bem. Imagine-se realizar um negócio jurídico de tal dimensão, contendo cláusulas complexas e valores econômicos vultosos para perdurar por décadas, mediante um instrumento contratual oponível apenas entre as próprias partes contratantes. Sou Professor de Direito das Coisas e, na sala de aula, para instigar alunas e alunos, costumava escrever no quadro uma indagação: “A Arena é do Grêmio?” A sala de aula, felizmente, transformava-se em um gre-nal jurídico. Por situações variadas, o negócio tendo por objeto a Arena foi ou está sendo revisto, mas os direitos reais estão bem definidos: basicamente, os direitos reais de propriedade e de superfície. Acaso o negócio estivesse formalizado apenas em instrumento particular, seria praticamente impossível resolver.

Anoreg/RS – Como avalia a prestação dos serviços dos cartórios à população?

Carlos Cini Marchionatti Esta pergunta também proporciona para mim muitos sentimentos unidos à razão. Como disse, provenho de uma família de serventuários da justiça. Com a idade de 12 anos, ajudava meu pai, o escrivão Wilson Marchionatti, na elaboração de formais de partilha. Ele lia e eu conferia, ou eu lia e ele conferia se a descrição do formal de partilha estava correta em relação à transcrição. Datilografava-se formal por formal para cada herdeiro. O uso do papel carbono, por incrível que pareça, foi um grande avanço. A nova sistemática registral, que também corresponde ao primeiro livro dos tantos do estimado amigo João Pedro Lamana Paiva, estava em elaboração. A organização judiciária, assim, previa os serviços cartorários judiciais e os extrajudiciais.

Os serviços cartorários judiciais foram totalmente estatizados, enquanto os serviços cartorários extrajudiciais adotaram a privatização por delegação do poder público. Isso propiciou um enorme crescimento aos serviços notariais e registrais, na medida em que seus titulares passaram a estar reunidos em entidades profissionais, as quais propiciaram um significativo aprimoramento intelectual e qualitativo dos delegatários e, por extensão, dos serviços por eles prestados à sociedade. Nesse sentido, gostaria de expressar minha admiração pelo pioneirismo do Desembargador Décio Antônio Erpen no reconhecimento da importância dos serviços cartorários extrajudiciais e no estímulo ao aperfeiçoamento intelectual dos seus titulares. Além dele, menciono o exemplo do registrador Zenildo Bodnar, ex-juiz federal, professor do programa de pós-graduação em direito da UNIVALI, portador de inúmeros títulos de mestrado e doutorado em diversas áreas, a quem se deve a apresentação do livro, um amigo pelo qual tenho a mais profunda admiração e respeito. Reunindo todas essas considerações, vejo os cartórios hoje como um grande polo de inovação e como prestadores de um serviço rigorosamente fundamental à sociedade.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Anoreg/RS