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Artigo – Arrecadação de imóveis abandonados, avanços legais e novas iniciativas – Por Ricardo Almeida Ribeiro da Silva

Muitas cidades no mundo vivenciaram o abandono dos seus centros originais com a migração dos habitantes e de investimentos para áreas urbanas periféricas.

No Brasil o processo foi ainda mais dramático. Ao longo dos últimos 50 anos surgiram verdadeiras zonas de deterioração e abandono imobiliário nos centros urbanos. Vários desses processos decorreram de zoneamentos e limitações legais que restringiram os imóveis a usos comerciais ou para prestação de serviços. Mas os reais fatores que levaram ao cenário atual foram: (1) a mercantilização do solo urbano, com estímulo à aquisição de novas habitações e unidades comerciais qualificadas; (2) a especulação imobiliária — que comprou áreas nas regiões periféricas a preços baixos, depois requalificadas por investimentos públicos municipais e revendidas a preços elevados (“mais valia”); (3) e os modelos rodoviários típicos do “american way of life”, que incentivaram o deslocamento diário das classes abastadas ou mesmo as classes médias para bairros mais afastados usando carros sonorizados nas autopistas.

Agora, em 2023, a pandemia de Covid-19 ampliou e aprofundou o esvaziamento dos centros urbanos em todo mundo e, sobretudo, no Brasil, recrudescendo o erro histórico das legislações e das políticas administrativas urbanas, cabaladas ou não pelas cirandas imobiliárias e rodoviárias.

Os esforços em favor da diversidade de ocupações e de usos imobiliários em todas as regiões da cidade (principalmente nos centros urbanos) emergem como um dos desafios cruciais do urbanismo contemporâneo, sobretudo para melhorar a ambiência e a qualidade de vida em regiões degradadas. Revisões urbanísticas usando novas tecnologias como “Lean”, “Design Thinking” e OPBP; isenções condicionais de IPTU ou de ITBI; financiamentos imobiliários especiais; incentivos e compensações urbanísticas — como nos programas conhecidos como “Reviver Centro” ou projetos de revitalização urbana (como no bem-sucedido caso das “Olimpíadas de Barcelona”) são mecanismos legais, administrativos, financeiros e fiscais importantes, que vêm se destacando nesse novo contexto.

Contudo, mesmo estas iniciativas parecem não ser suficientes para reverter o longo e profundo processo de deterioração das áreas centrais e de ocupação mais antiga das cidades, sobretudo em relação a imóveis abandonados pelos proprietários — pois muitos deles aguardam a ruína dos prédios e edificações para fugirem de restrições edilícias destinadas a proteger e preservar suas características históricas ou culturais.

Sobre este tema específico, é preciso destacar que o Brasil conhece há muito um instrumento legal específico para a arrecadação e apropriação pública de imóveis abandonados, previsto no desde o Código Civil de 1916[1]. Porém, nunca foi implementado na prática.

No Código Civil de 1916, a competência legal para arrecadação de imóveis abandonados estava determinada em favor dos Estados, fazendo coro com a ideia de transferência do controle da posse (regularização fundiária sobre áreas públicas) pelos “Estados-membros”, como definido pela Constituição da “República Oligárquica” de 1891. Mas os Estados nunca avançaram na regulação do instrumento e na sua efetivação.

De fato, existiam alguns entraves que tais como: o tempo longo (dez anos) para caracterização do abandono e a falta de elementos objetivos para caracterizar tal situação, o que somavam ao velho patrimonialismo brasileiro, superprotetor da propriedade e da posse contra o interesse coletivo.

Com o Código Civil de 2002 o poder-dever de arrecadar bens imóveis abandonados foi finalmente transferido para os municípios, em consonância com o preceito constitucional de atribuiu expressamente aos Municípios a competência para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (artigo 30, VIII da Constituição de 1988). E vai além, permitindo também a arrecadação de imóveis rurais pelas municipalidades brasileiras.

O tempo para caracterização do abandono foi reduzido para três anos e, mais importante, criou-se uma presunção absoluta da intenção de abandonar o bem imóvel na hipótese em que “cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais” (artigo 1.276, caput e §2º [2]).

Cumpre frisar que a caracterização da volição do titular do domínio pode ser verificada por outros meios, mesmo quando não haja a presunção decorrente da “reiterada inadimplência”.

Contudo, apesar dos avanços, o Código Civil de 2002 ainda não havia fixado claramente a competência administrativa autoexecutória do Poder Executivo Municipal para os procedimentos de arrecadação e de apropriação dos imóveis abandonados. Esta dúvida acabou servindo de esteio para a tradicional indiferença ou lentidão dos gestores locais na implementação de medidas para efetivação da já vetusta “arrecadação de imóveis abandonados”.

Apesar de  já ser possível extrair a autoexecutoriedade administrativa da redação original do Código Civil, ela se tornou inequívoca após a edição os artigos 64 e 65 da Lei Federal nº 13.465/2017[3].

O novo diploma legal foi dedicado a diversas normas gerais de urbanismo e meio ambiente urbano e não previu apenas os procedimentos administrativos de arrecadação e transferência para o patrimônio do ente municipal, mas também medidas acauteladoras para a imediata preservação e promoção do imóvel abandonado, devendo o ente local valer-se de recursos próprios ou de terceiros para tais finalidades.

Apesar dos evidentes progressos legislativos dos últimos 20 anos, foram tímidos os avanços das administrações locais no desenvolvimento de projetos e programas de arrecadação de imóveis abandonados[4].

Algumas cidades (como Porto Alegre e Salvador) vinham adotando medidas pioneiras para arrecadação de imóveis por meio de suas procuradorias municipais. Mesmo assim os resultados eram restritos, pois excluíam os imóveis invadidos (nos quais terceiros — e não os proprietários — exerciam posse) e, também, aqueles cujos proprietários quitavam ou parcelavam os tributos fundiários inadimplidos por vários anos “afastando a presunção de abandono”, logo após a notificação do início do processo de arrecadação.

Ainda que estas duas situações (posse de terceiros sobre imóvel abandonado-invadido e pagamento extemporâneo do IPTU após notificação) possam ser desconsideradas para que se mantenha o reconhecimento da situação de abandono do imóvel pelo proprietário, certo é que elas vêm reconhecidas pelas duas municipalidades referidas como impedimentos à arrecadação.

Agora, o Rio de Janeiro edita o Decreto Municipal nº 53.306/2023, com a promessa de efetivar e acelerar os procedimentos de arrecadação de imóveis abandonados, dentro do esforço de recuperação do centro antigo da capital carioca[5].

Segundo a normativa, a iniciativa dos procedimentos poderá se dar a partir de distintas secretarias municipais, visando a dinamizar a arrecadação de imóveis abandonados, recuperando imediatamente a sua habitabilidade, destinando-os a finalidades econômicas e sociais de interesse das coletividades locais.

Uma vez notificado o proprietário e não respondida em 30 dias, restará caracterizada a concordância com a arrecadação, devendo ser arrecadado como bem vago mediante publicação de decreto do prefeito.

Espera-se que, agora, os sucessivos entraves e desinteresses administrativos pelos imóveis abandonados seja definitivamente superada, trazendo-os de volta à vida urbana, com o melhor aproveitamento possível para os interesses da coletividade local, recuperando áreas centrais degradadas, sua memória de história e cultura.

_________________________

[1] Art. 589. Além das causas de extinção consideradas neste Código, também se perde a propriedade imóvel:

(…)

III – pelo abandono;

(…)

  • 2º O imóvel abandonado arrecadar-se-á como bem vago e passará, dez anos depois, ao domínio do Estado, onde se acha, ou da União, se estiver no Distrito Federal ou em território não constituído em Estado (parte com nova redação pela Lei n. 6.969/81: o Território ou do Distrito Federal se se achar nas respectivas circunscrições).

[2] Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.

  • 1º O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
  • 2 o Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.

[3] Art. 64. Os imóveis urbanos privados abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo Distrito Federal na condição de bem vago.

(…)

  • 2º O procedimento de arrecadação de imóveis urbanos abandonados obedecerá ao disposto em ato do Poder Executivo municipal ou distrital e observará, no mínimo:

I – abertura de processo administrativo para tratar da arrecadação;

II – comprovação do tempo de abandono e de inadimplência fiscal;

III – notificação ao titular do domínio para, querendo, apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de recebimento da notificação.

  • 3º A ausência de manifestação do titular do domínio será interpretada como concordância com a arrecadação.
  • 4º Respeitado o procedimento de arrecadação, o Município poderá realizar, diretamente ou por meio de terceiros, os investimentos necessários para que o imóvel urbano arrecadado atinja prontamente os objetivos sociais a que se destina.
  • 5º Na hipótese de o proprietário reivindicar a posse do imóvel declarado abandonado, no transcorrer do triênio a que alude o art. 1.276 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), fica assegurado ao Poder Executivo municipal ou distrital o direito ao ressarcimento prévio, e em valor atualizado, de todas as despesas em que eventualmente houver incorrido, inclusive tributárias, em razão do exercício da posse provisória.

Art. 65. Os imóveis arrecadados pelos Municípios ou pelo Distrito Federal poderão ser destinados aos programas habitacionais, à prestação de serviços públicos, ao fomento da Reurb-S ou serão objeto de concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse do Município ou do Distrito Federal.

[4] Em maio de 2023 o Municipolis Instituto promoveu o IV $IFRA – Seminário de Inovações e Ferramentas para Recuperação da Arrecadação e Receitas Alternativas e tratou do tema em painel específico com o título “Arrecadação de Imóveis Abandonados e Herança Vacante/Jacente”, mediante exposição da Procuradora do Município de Porto Alegre, Priscila Silva Pereira.

[5] Art. 9º O imóvel arrecadado durante os três anos imediatamente seguintes à publicação do Decreto que declara sua arrecadação e antecedem a propriedade definitiva pela municipalidade, poderá ser destinado a: I – Prestação de serviços públicos; II – Concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse do Município; III – Cessão onerosa a terceiros interessados em explorar economicamente o imóvel, mediante contrapartida de conservação, restauração ou reconstrução, totais ou parciais do imóvel, mediante chamamento e concurso públicos. Parágrafo único. As possibilidades previstas para destinação do imóvel arrecadado nas condições e período especificado no caput não poderão ultrapassar o mesmo período de três anos, podendo a atividade que ocupar o imóvel neste período, ser renovada posteriormente, quando da propriedade definitiva pela municipalidade.

Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é professor na pós-graduação de Direito Tributário da Uerj, procurador do município do Rio de Janeiro e assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf).

 

Fonte: Conjur